quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Crônica: um diálogo singelo entre duas obras vistas por uma mente sofismática


Primeira crônica desse blog - uma análise abordando dois de meus filmes favoritos: Na natureza selvagem e Onde vivem os monstros.


Momentos após o término da sessão de Onde vivem os monstros, me veio à cabeça, quase que inconscientemente, outro filme, Na natureza selvagem, de Sean Penn. A princípio, não pude compreender inteiramente a razão dessa correlação feita pelo meu inconsciente. Simploriamente, pensei no título de ambas as obras, que possuem a palavra “wild” (selvagem - em inglês), mas logo me atentei para o fato de que era muito mais do que isso; logo percebi que minha mente tinha entendido e compreendido ligações que, no primeiro momento, ignorei. Com a reflexão, foi possível que houvesse um encontro freudiano entre meu inconsciente, meu sub-consciente e meu consciente desatento. A partir desse encontro, ficou claro e beirando o óbvio que o paralelismo entre as obras se estendia a muito além do título (tanto assim que um caro amigo acabou por pensar na mesma relação). Trata-se, na verdade, de um diálogo intenso entre ambos, que diz respeito ao tema, à narrativa, ao inconsciente (olha ele aí de novo), à filosofia e, até mesmo, ao caráter catártico dos filmes dirigidos por Spike Jonze e Sean Penn.

Comecemos, portanto, a pensar nos dois personagens principais. Christopher McCandless, protagonista de Na natureza selvagem – interpretado por Emile Hirsh – é um dínamo, um promissor estudante e atleta que, ao se formar, contrariando seus pais e toda uma sociedade a sua volta, resolve largar sua vida já planejada por terceiros e tomar outros rumos. Um rumo em direção ao selvagem. Chris não quer saber da matéria e faz questão de dizer isso a seus pais quando recusa um carro novo. Chris não acredita na sociedade que o cerca, ele recusa a humanidade, mas é o mais sincero dos homens. Chris não está em busca de uma nova vida, e sim de vida; busca na natureza o que não encontrou nos homens, busca um conhecimento pessoal e espiritual que a poluição da cidade não o permite. Chris quer viver, quer se libertar, quer experimentar o mundo, porque acredita que assim é feita a alma de um homem, de novas experiências. Chris, assim como Tolstoy, não acredita na razão e não pretende a redenção, ele quer apenas ser.

Max é uma criança e, assim como todas, é cheio de dúvidas e, principalmente, de perguntas. Max tem problemas comuns; uma mãe separada, que, apesar de seu amor incondicional, não pode dar-lhe a atenção que deseja, muito menos sua irmã adolescente, que pouco quer saber de seus problemas “infantis”. Max quer atenção, quer brincar, se divertir, tudo que toda criança quer. Da solidão vem a imaginação, e, a partir daí, aparecem todas as simbologias de seus medos. Em uma noite de desentendimento com sua mãe, Max vai parar dentro de si, do seu mundo, que na sua cabeça se resume a monstros, monstros esses que bem metaforizam aspectos de sua vida. Max não quer autoconhecimento, e nem poderia, já que não deve nem saber o significado da expressão. Max quer fugir e na terra dos monstros é onde ele quer estar. Mas mesmo que fuja, ele não pode fugir dele mesmo, de suas angústias e dúvidas, porque essas o perseguem, mesmo que em forma de monstros.

A selva de Chris é o mundo dos monstros de Max, é onde ambos desejam estar. A busca pelo norte do estudante é a busca por qualquer lugar seguro para o pequeno Max. Christopher busca experiências; Max, segurança. São objetivos que não podiam ser mais contrastantes, porém, ao mesmo tempo, ambos querem fugir, querem ser livres, seja para brincar seja para viver. Eles dialogam pela busca de seu El Dorado pessoal. Os dois veem na fuga uma forma de lidarem com seus próprios sentimentos e incertezas. Max busca um porto-seguro e, não por acaso, seus monstros amigos dormem em montinhos, como se fossem fortes, como aqueles que tanto gosta de construir; Chris, por sua vez, quer o desconforto, o total desapego às coisas que o confortaram durante toda sua vida, e também, não por acaso, busca a floresta, o desconhecido, que lhe traz instantaneamente a apreensão, o medo daquilo que não se conhece. No entanto, assim como Max, que encontra nos monstros pedaços de sua própria vida (Carol, tem um quê da autoridade de sua mãe, mas também do seu próprio ciúme; KW resume bem um sentimento maternal de proteção e afago e até mesmo um lado fraternal de sua irmã, por costumeiramente abandonar a família e buscar abrigo com seus amigos; e até aquele que nunca é ouvido, representa bem um aspecto da solidão do próprio Max, e assim por diante), Chris encontra ao longo do caminho figuras que inevitavelmente remetem à sua vida, como Jan (interpretada por Catherine Keener), que em certo momento de sua jornada exerce o papel acolhedor de mãe, dando-lhe conselhos e carinho; como o sofrido Ron, que talvez tenha sido seu grande amigo, mas que, em muitos momentos, assume uma figura paterna na preocupação que tem e autoridade que exerce durante o tempo em que convivem. Ou mesmo a adolescente Tracy (papel de Kristen Stewart) que, apesar das investidas românticas, não consegue fazer com que Chris a veja somente como mulher e, no momento em que fica sabendo sua real idade, instintivamente a associa à sua irmã mais nova. Fica claro, portanto, que a fuga de ambos dialoga desde o início, seja se relacionando diretamente seja em uma dicotomia aparente.

É interessante analisar, também, a alcunha que Christopher assume para suas aventuras, Alexander Supertramp, algo muito comum na infância, quando nos damos nomes ou assumimos outra personalidade simplesmente para nos sentirmos menos carne e osso, menos frágeis e mais poderosos. Supertramp é uma maneira que Chris encontrou para, além de esquecer seu passado, enfrentar as diversas dificuldades que a natureza lhe impõe. Já Max não hesita em se autoafirmar rei, quando perguntado. Max vê na suposta ingenuidade de seus monstros, a oportunidade ser mais forte, mais poderoso, e, por conseguinte, mais livre. Chris e Max assumem personagens que os ajudam a combater seus anseios e a lidarem com suas dúvidas, ambos utilizam o poder do novo, do ser desconhecido para se libertarem das amarras que os prendem, sejam pais relapsos sejam medos pueris.

Ambas as obras contam com diretores que não seguem a cartilha do “mainstream”. São pensadores, homens que sabem o que contar e como contar. Tanto a obra de Jonze como de Penn narram jornadas, mas valorizam o personagem. São espécies diferentes de “road-movies”, que buscam desconstruir o ser e usam o caminho como um meio e não um fim para fazê-lo. Têm a exata noção de que o importante não é o caminho e sim quem o caminha. Jonze utiliza a câmera na mão para narrar a trajetória de Max como um retrato real, mas foge da mesmice imediatista, carregando a narrativa de contemplação e metáforas sentimentais. Sempre distante, no entanto, do sentimentalismo barato. Penn adere a travellings e a planos panorâmicos para ressaltar a grandiosidade e imponência da mãe natureza, anunciando os desafios e perigos que Chris enfrentará. Lembrando em muito Homem-urso de Herzog, o ator-diretor e seu fotógrafo utilizam paletas de cores que dão ao filme um ar documental que não poderia ser mais inerente à trama, fazendo, assim, com que mergulhemos ainda mais na história e nos sintamos imersos naquela selvagem natureza.

É peculiar perceber algumas escolhas dos dois cineastas (e que alimentou ainda mais meu desejo de pensá-los uniformemente) como, por exemplo, deixar a cargo de um músico à margem do cinema, e não de um compositor especializado, a trilha sonora de seus filmes. A escolha de Karen O (Onde vivem os monstros) e Eddie Vedder (Na natureza selvagem) não podia ser mais orgânica aos filmes, pois, em ambos os casos, sintetizam de forma brilhante as duas narrativas. Nenhuma palavra traduz melhor o filme de Spike Jonze do que a música “All is Love” ou a linda “Hard Sun” no caso da obra de Sean Penn. Percebe-se, ainda, uma livre utilização do material de fonte (o livro infantil de poucas páginas de Sendak de Onde vivem... E a biografia escrita por Jon Krakauer de Na natureza...) para contar histórias sob seus olhos, sendo fiel ao espírito e aos temas das origens, mas criando um mundo novo a partir das mesmas.

A câmera que sai do trailer de Christopher McCandless rumo aos céus é a mesma que assiste, impassível, a volta para casa de Max em seu barquinho. Sabemos que ali encerra-se uma jornada, mas que tudo que havia para ser vivido, foi. Sabemos que o Max que adentrou aonde vivem os monstros não é mesmo que saiu, muito menos Chris morre como o mesmo que enfrentou a natureza selvagem pela primeira vez. Eles se tornaram heróis e reis durante suas caminhadas, para no fim descobrirem a si mesmos e às suas naturezas, sejam elas selvagens ou monstruosas.


Miguel Moura


* um agradecimento especial à amada Caroline da Matta por sua ajuda.



2 comentários:

  1. É sempre um prazer revisar um bom texto!
    Beijos!

    ResponderExcluir
  2. Muito boa comparação, realmente são dois grandes filmes e com muita coisa a nos ensinar.

    ResponderExcluir